# 5 - Quantas portas se abrem e se fecham até realmente nos sentirmos pertencentes?
Pertencimento é um valor extremamente importante para mim, e só percebi isso quando deixei de pertencer.
O avião decolou do aeroporto de Confins por volta das 8 da manhã. Como de costume, mantive os olhos fechados e segurei firme a mão do meu marido. Decolagens e pousos sempre me causam muito medo. Só quando o avião se estabilizou no céu, ousei abrir os olhos e contemplar a paisagem pela janela. O dia estava bonito. Do alto, avistei os contornos das serras tão características do meu estado, o contraste entre o verde exuberante da vegetação e os diversos tons de marrom resultantes da atividade da mineração. Senti um aperto no peito. Naquele momento me caiu a ficha de que estava partindo sem uma data definida para retorno. Não sabia quando voltaria a ver o mar de montanhas de Minas Gerais. Justo nesse instante, começou a tocar nos meus fones de ouvido a música Portas, da Marisa Monte, e eu não consegui, nem sequer tentei, conter as lágrimas:
Nesse corredor
Portas ao redor
Querem escolher
Olha só, uma porta sóUma porta certa
Uma porta só
Tentam decidir
A melhor
Qual é a melhor?Não importa qual
Não é tudo igual
Mas todas dão em algum lugar
E não tem que ser uma únicaTodas servem pra sair ou para entrar
É melhor abrir para ventilar
Esse corredor
Chorei um misto de emoções. Tristeza pelo que estava deixando – minha terra, meus costumes, minha família, meus amigos, tudo que era familiar, seguro e reconfortante – e empolgação, diante da expectativa das múltiplas portas que se abririam para mim no meu novo destino, o Canadá.
Após uma pausa revigorante de dez dias explorando a natureza intocada da Costa Rica e mergulhando no conceito de “pura vida”, seguida por uma breve parada na Big Apple para indulgências gastronômicas – dois extremos que se complementaram surpreendentemente bem –, em 24 de junho de 2023, finalmente desembarquei em Montreal, cidade que, a partir de então, passaria a chamar de lar.
Não era a minha primeira vez em Montreal, pois havia passado seis meses na cidade, entre junho de 2022 e janeiro de 2023, em uma espécie de teste para ver se eu me adaptaria e, especialmente, se daria conta do rigoroso inverno canadense.
É fácil se apaixonar por Montreal. A cidade encanta por sua arquitetura que harmoniza o clássico e o contemporâneo em uma variedade de estilos. Desde bairros charmosos como o Plateau, com suas casinhas coloridas e icônicas escadas externas, até regiões ultramodernas como Griffintown, cada localidade exibe personalidade e beleza próprias. As ruas arborizadas e os inúmeros parques, além de contribuírem para a estética da cidade, oferecem aos habitantes inúmeras possibilidades de contato com a natureza, um verdadeiro respiro em meio ao caos de uma grande metrópole.
No verão, Montreal se transforma em um palco vibrante de atividades culturais. É aqui que acontece um dos maiores festivais de jazz do mundo, mas esse é apenas um exemplo entre muitos outros eventos que a cidade sedia ao longo do ano.
Quando eu cheguei aqui, no verão de 2022, foi exatamente isso que encontrei: uma cidade viva, alegre, em que todos aproveitavam ao máximo a estação quente com atividades ao ar livre e eventos culturais. Assim, foi fácil cair de amores por Montreal logo de cara.
O verão foi seguido do outono e, para quem, como eu, ama as cores dessa estação, não há lugar melhor para estar. Montreal e toda a província do Quebec viram um espetáculo de belezas naturais. Ao ver a cidade pintada em diferentes tons de marrom, vermelho e amarelo, meu amor foi só crescendo.
Nem o temido inverno conseguiu abalar meu encantamento pela cidade. Apesar de não ser a maior fã de temperaturas baixas, os meses de frio foram de muita empolgação. Fazia tempos que eu não vivia tantas experiências pela primeira vez. Foi minha primeira vez vendo neve, enfrentando temperaturas negativas – muito negativas mesmo –, primeiro Natal como aqueles filmes da Sessão da Tarde. Tudo foi lindo e mágico.
Por isso, quando voltei em 2023, estava muito empolgada com o fato de que Montreal, aquela cidade pela qual me apaixonei, viraria minha casa definitivamente.
Mas eu não estava preparada para uma singela diferença: passar seis meses em uma cidade não é a mesma coisa que se mudar definitivamente para ela. Ainda que seja um período longo, o fato de haver uma data de retorno para o país de origem, torna a experiência diferente. Naqueles seis meses eu era uma turista. Tudo era novidade e eu só queria aproveitar até a última gota, porque sabia que iria embora. Quando me mudei definitivamente para Montreal, porém, a experiência foi bastante diferente.
Desembarquei sozinha em Montreal no dia 24 de junho de 2023 – há exatamente 365 dias –, pois, por um problema da companhia aérea, eu e meu marido tivemos que viajar separados. Não tive a mão dele para segurar durante a decolagem e o pouso do avião, e não a teria ao cruzar a porta que me levaria ao nosso novo destino.
Chegar sozinha me causou um enorme estranhamento. Pode parecer bobagem, mas para mim seria simbólico entrar com meu marido no Canadá, país de sua nacionalidade, já que a mudança era um projeto de vida nosso. Ele é o meu maior laço com o país, meu ponto de apoio e segurança. Sem ele ao meu lado naquela travessia, me senti extremamente vulnerável, como se eu fosse pequena demais, frágil demais diante da imensidão do que me aguardava do outro lado. Além disso, o medo de enfrentar a imigração sozinha, sem uma passagem de volta para o Brasil, só aumentava minha ansiedade e insegurança. Tinha muito receio de que fechassem as portas para mim já de cara, não me deixando sequer entrar no país.
Apesar do medo, deu tudo certo e eu finalmente entrei em solo canadense. Ao sair do aeroporto não foi uma cidade alegre, vibrante e colorida que encontrei, mas sim um céu completamente cinza e o ar cheirando a fumaça, resultado das queimadas que devastavam diversas florestas no Canadá. Esse cenário aumentou ainda mais meu estranhamento e me causou uma enorme angústia, sentimentos nada comparados à minha expectativa anterior de reencontrar Montreal.
Meus primeiros dias na cidade foram de um cansaço sem fim. Iríamos nos mudar para o apartamento do meu marido, que estava alugado há anos. No dia que visitamos o local pela primeira vez, meu sentimento de frustração só aumentou. O imóvel estava lamentável, os antigos inquilinos haviam feito um verdadeiro estrago. Paredes perfuradas, sujeiras por todos os lados, móveis estragados. Foram vários dias tentando encontrar pintores que não cobrassem preços exorbitantes, limpando cada canto do apartamento, frequentando lojas de móveis e decoração e lidando com diversas outras burocracias.
O festival de jazz, que eu tanto ansiava, consegui aproveitar pouco de tão cansada que estava devido a todos os acontecimentos anteriores. Ao menos fui ao show da Marisa Monte, que iniciou justamente com a música Portas. Ao ouvi-la, as lágrimas desceram de forma descontrolada novamente, mas desta vez apenas de angústia, por não saber se haveria mesmo portas a se abrirem para mim nesse novo país.
Finalmente, quando a casa se ajeitou, as coisas foram se ajeitando internamente também. Eu e meu marido conseguimos estabelecer uma rotina, montamos nosso escritório para trabalhar de casa, passamos a fazer atividades físicas, exploramos nossa nova vizinhança, encontramos os melhores lugares para fazer compras, os melhores restaurantes. Eu comecei a sair mais sozinha, a reencontrar as amigas que fiz aqui na primeira vez que vim, e aos poucos fui me sentindo mais em paz.
No final de julho de 2023, após um mês preenchendo formulários e reunindo diversos documentos, finalmente demos entrada no processo para obter a minha residência permanente no Canadá, algo semelhante ao Green Card americano. Eu já sabia que se tratava de um processo longo e burocrático, porém uma semana antes de enviarmos nossos documentos, mudaram o tempo de processamento apenas para a província do Quebec. Enquanto no resto do Canadá a expectativa continuava de menos de ano, no Quebec passou a ser de vinte e seis meses, ou seja, o prazo triplicou!
Isso me devastou. Sabe quando você chega em casa após um dia longo e exaustivo, e tudo o que mais deseja é relaxar no sofá, mas ao chegar na porta percebe que não está com as chaves? Você liga para o chaveiro, que avisa que vai demorar, e com isso você fica trancada do lado de fora, olhando para a sua casa tão próxima e, ao mesmo tempo, inacessível, sem poder fazer nada além de esperar. Foi exatamente assim que me senti: como se o Canadá tivesse me trancado do lado de fora de casa, e eu tivesse que aguardar, exausta, até que alguém finalmente chegasse para abrir as portas e me permitir entrar.
O que mais me angustiava não era nem a espera prolongada, mas sim toda a carga emocional que vem junto com a falta de um status de residente em um país. Embora eu não estivesse em situação ilegal, durante a espera pela decisão final eu só poderia permanecer legalmente no país com o status de turista, o que acarretaria restrições significativas: não poder estudar ou trabalhar, a não ser que eu aplicasse para vistos específicos; não ter acesso ao sistema público de saúde e, o que para mim seria mais doloroso: não poder sair do país, nem mesmo para visitar minha família no Brasil.
Se antes eu estava começando a me sentir finalmente em casa em Montreal, lidar com o processo de residência permanente me levou de volta à estaca zero. Eu me senti totalmente desconectada da cidade e do país.
Tudo o que eu queria era voltar para minha verdadeira casa, para o Brasil, onde, de fato, eu me sentia pertencida e acolhida. Por causa disso, passei a enxergar tudo aqui como negativo, fazendo comparações o tempo todo, sempre ressaltando que o Brasil era melhor que o Canadá. E claro que isso passou a ter impactos na minha vida e nos meus relacionamentos.
Quando não suportava mais, marquei uma sessão com uma antiga terapeuta, porque tinha a impressão de que ela, conhecedora das minhas ansiedades e desejo de controle, iria me entender. Com apenas poucas palavras ela conseguiu mudar minha perspectiva. Disse algo como:
Você precisa aceitar que, de fato, ainda não faz parte. O Canadá ainda não te aceitou como residente. É frustrante, mas é necessário aceitar o processo. Lutar contra só vai te deixar mais triste e com raiva.
Ela estava certa. Eu estava querendo pertencer a todo custo. Pertencer com o status de residente, como eram minhas amigas aqui, algo que não era possível para mim, naquele momento.
Pertencimento é um valor extremamente importante para mim, e só percebi isso quando deixei de pertencer. No meu país de origem, o pertencimento veio naturalmente. Nasci com uma série de direitos básicos – ainda que saibamos que eles não são acessíveis da mesma forma para todos – dos quais nunca precisei me preocupar. Não pensamos em como eles são importantes até não os termos mais. Como imigrante, é preciso provar que se tem direito a ter direitos, o que é muito desafiador.
Essa consciência, ao mesmo tempo, me trouxe uma outra clareza: a de que embora eu não pudesse pertencer oficialmente, de acordo com os parâmetros do governo, poderia encontrar outras formas de fazer parte. Foi aí que entendi a importância de se construir comunidades. Quando me aproximei mais da família e cultura do meu marido, me senti mais inserida. Quando estreitei os laços com a comunidade brasileira aqui, me senti mais conectada. Ao passar a frequentar a academia do bairro e fazer amigos de várias partes do mundo, me senti mais acolhida. Quando conheci melhor meus vizinhos do prédio, eles passaram a me chamar pelo nome e a conhecer um pouco da minha história, me senti mais integrada. E assim, aos poucos, fui fincando minhas raízes.
Há pouco mais de um mês, meu visto temporário de trabalho foi aprovado e me inscrevi no sistema público de saúde. O processo de residência permanente ainda está em andamento, mas estas já foram grandes vitórias – que vieram antes do esperado – e oficializaram uma situação de fato: eu moro aqui, esta é a minha casa.
Com isso, tenho buscado me reconciliar com Montreal, lembrando e valorizando todas as coisas boas que a cidade tem a oferecer. Especialmente agora que o verão está começando, os dias estão ensolarados, longos e lindos e mais um festival de jazz vem aí.
Um dia de cada vez, vou me sentindo menos estranha neste lugar. Estou vendo, e melhor, sentindo portas se abrindo. E assim vou trabalhando o solo, adubando, esperando que a terra fique fértil para que as minhas raízes possam se fortalecer e, finalmente, pertencer.
Fora do Laboratório…
Essa edição de hoje veio de um lugar de muita vulnerabilidade e acabou ficando bastante longa. Então, para não te cansar demais, hoje não terá atualizações sobre a vida fora do Laboratório.
Mas aqui vão algumas dicas rápidas de coisas legais, ainda sobre o tema imigração:
Para ler: A última edição da Estrangeirismos, que fala sobre visitar o país de origem depois de morar fora:
Para assistir: Past Lives (disponível no Amazon Prime), que mostra, com tanta delicadeza e profundidade, os desafios que é ser imigrante.
Para ouvir: A música Felicity, da banda Guacayo - que por sinal é ótima -, e que eu cantava sem parar quando vim para Montreal em 2022:
I know there is no guarantee you’ll be the one for me
But I adored you off the entry
Be the one, be the one, be the one for me – Oh city
Be the one, be the one, be the one for me
Abraços e até breve!
Créditos:
Revisão de texto: Lorena Camilo
Me senti lendo um livro. Você costura as palavras perfeitamente bem.
Obrigada por compartilhar 🌹
conheço bem essa sensação de não pertencer! fico feliz que vc esteja encontrando seu lugar nesse novo país :)