#4 - Saudade tem cheiro, tempero e gosto
Sempre que desejo sentir a presença da minha mãe, vou para a cozinha e preparo um bolo
A minha mãe é a rainha dos bolos. Ela é capaz de fazer bolos “no olho”, sem medir farinha, açúcar, leite ou fermento, colocando a quantidade de ovos que ela achar que convém. Normalmente dá muito certo e os bolos ficam deliciosos, um ou outro experimento não é bem-sucedido, mas ela logo acha o jeito de acertar a receita, de modo que os próximos saiam perfeitos.
Na casa dos meus pais quase sempre tem bolo, especialmente o de fubá, um dos mais frequentes em nossos cafés da tarde. Inclusive, um episódio curioso veio à tona há alguns anos e acabou virando piada na família: depois de mais de vinte anos de casados meu pai revelou que não gosta muito desse tipo de bolo. Minha mãe ficou em choque, tantos anos assando bolos de fubá para descobrir que meu pai só os comia por educação e para agradá-la. Apesar da revelação, desconfio que meu pai tenha desenvolvido um apreço tardio pelo sabor, já que minha mãe continua assando bolos de fubá semanalmente e ele continua os comendo.
Embora seja filha da rainha dos bolos, eu mesma nunca havia feito um até recentemente. Na verdade, já havia tentado, sem tanto sucesso, algumas receitas de bolos fitness, dessas em que você substitui farinha de trigo por farinha de aveia, leite de vaca por leite vegetal, ovos por linhaça e assim por diante, bem à la Bela Gil. Mas bolo mesmo, de receita tradicional, eu nunca havia tentado. Eu morria de medo de não dar certo, do bolo não crescer, ficar embatumado, do gosto sair esquisito. Ou seja, tinha muito receio de não fazer um bolo lindo, gostoso, perfeito como os da minha mãe.
Havia, ainda, um outro motivo: a falta de necessidade. Até então, para comer um bolo delicioso, bastava fazer uma visitinha à casa dos meus pais no final de semana. Podia até escolher o sabor com antecedência que minha mãe, de bom agrado, atendia ao pedido. Assim, os finais de semana, especialmente os domingos à tarde, eram de casa cheia – de família, de agregados e muitas vezes até de vizinhos –, bolo recém-saído do forno, cafezinho coado na hora e conversas sem fim. Até que me mudei para o Canadá e a visita no final de semana não se tornou mais possível.
Imigrar provoca uma miscelânia de sentimentos. Ao mesmo tempo que se aprende a estar em um mundo novo, a existir em outra língua e cultura, a saudade do que ficou para trás é grande e muitas vezes difícil de lidar. De todas as saudades, as que mais me apertam são a da família e da comida, e para mim uma está diretamente relacionada a outra.
Na minha família, o ato de comer, mais do que qualquer outra coisa, é o que nos conecta. Não somos uma família que faz muito programas juntos, somos uma família que come junto e é durante esse ato que compartilhamos nossos pensamentos, emoções, alegrias e dores. Eu não tenho saudades de qualquer comida do Brasil, tenho saudades do cheiro, do tempero do gosto da comida da minha mãe e, é claro, dos bolos perfeitos que ela faz. Sinto falta da família reunida na cozinha apertada dos meus pais, conversando, rindo, tomando café e comendo bolo.
Foi por isso que decidi me aventurar a fazer meus próprios bolos aqui no Canadá. Não na expectativa de que isso fosse fazer desaparecer a saudade de casa. Como imigrante, eu descobri bem rápido que saudade é algo que não passa, a gente apenas aprende a lidar com ela. O que eu queria era apenas sentir, novamente, aquele conforto que um cheiro de bolo assando no forno traz. Eu queria sentir o abraço da minha mãe em forma de cheiro e gosto de bolo.
A primeira receita escolhida foi bolo de cenoura, meu favorito. Uma escolha ousada, já que é um dos bolos mais chatos de se fazer, e basta um errinho para a receita desandar. Peguei a receita com minha mãe, mas confesso que precisei de uma ajudinha extra. Ao contrário dela, eu preciso da quantidade de ingredientes exata, não tenho essa capacidade de medir as coisas no olho. Na receita dela, por exemplo, consta como ingrediente duas cenouras médias. Mas o que é uma cenoura média? E o que é uma cenoura média no Canadá? Eu sinceramente não faço ideia. Assim, procurei no Google uma receita que trouxesse os ingredientes em quantidades certas. Encontrei-a no site Panelinha, da Rita Lobo. Comparando com a da minha mãe, vi que eram parecidas. Segui ambas as receitas, a da Rita para as quantidades, a da minha mãe para o modo de fazer.
Separei e medi todos os ingredientes:
2 ¼ xícaras (chá) de cenoura descascada e ralada
4 ovos em temperatura ambiente
1 xícara (chá) de óleo
1½ xícara (chá) de açúcar
2 xícaras (chá) de farinha de trigo
1 colher (sopa) de fermento em pó
1 pitada de sal
Manteiga e farinha de trigo para untar e polvilhar a fôrma
Seguindo agora o modo de preparo da receita da minha mãe, comecei batendo as cenouras, os ovos, o óleo e o açúcar. Essa etapa, aparentemente simples, foi um desafio para mim. Eu não tenho liquidificador em casa e, por isso, precisei recorrer a um mixer de mão. Foi uma verdadeira maratona até que as cenouras fossem completamente trituradas e a mistura alcançasse a consistência lisa e uniforme desejada. Em seguida, despejei a mistura líquida em uma tigela e adicionei a farinha, o sal e, por último, o fermento, misturando tudo delicadamente à mão. Segui à risca o conselho de minha mãe: não bater a massa com força e mexer tudo suave e delicadamente, a fim de evitar que o bolo se tornasse pesado e embatumado. Apesar da ansiedade e do medo de dar errado, eu estava confiante, a consistência da massa estava bem parecida com as que vi minha mãe preparar.
Despejei a massa preparada na forma previamente untada e enfarinhada e levei-a ao forno pré-aquecido a 356°F, medida de temperatura utilizada no Canadá, equivalente a 180°C.
Durante cerca de 40 minutos fiquei observando, através da vidraça do forno, o meu bolo assar e crescer, quase como um daqueles cachorros que admiram hipnotizados os frangos assando nas calçadas das padarias. Enquanto isso, meu apartamento era envolvido por um aroma delicioso, que, inevitavelmente, me transportava para a cozinha da minha mãe.
O alarme soou, indicando o momento crucial e meu coração disparou. Era chegada a hora da verdade! Estava morrendo de medo de que o bolo abaixasse na abertura do forno, mas para minha alegria, ele manteve sua forma intacta. Espetei um palito na massa e, ao retirá-lo, ele saiu limpinho, indicando que o bolo estava perfeitamente assado. Além disso, observei que havia se formado uma casquinha grossa na superfície o que, para mim, é sinal de bolo bom!
Quase incapaz de conter a ansiedade, esperei o bolo esfriar antes de desenformar, enfrentando mais um momento tenso: o medo de que minha criação fosse arruinada ao ser retirada da forma. No entanto, para minha satisfação, o bolo permaneceu intacto e lindo, digno de ser exibido em uma padaria. Restava apenas a última prova, a mais importante: o sabor.
Como já passava das 15h, optei por preparar um chazinho para acompanhar o bolo, uma vez que tomar café após esse horário me causa insônia. Então, meu marido – minha cobaia nas minhas aventuras culinárias –, e eu nos sentamos à mesa, cada um com sua fatia de bolo e seu chazinho, para a degustação. Para minha enorme felicidade, o veredicto foi positivo: meu primeiro bolo de cenoura não apenas assou, cresceu e desenformou com sucesso, como também estava delicioso!
Feliz e animada, enviei fotos para a minha mãe. Mais tarde, durante nossa tradicional conversa por chamada de vídeo, compartilhei minuciosamente o processo de criação. Orgulhosa, ela me parabenizou e ofereceu mais dicas para as futuras fornadas.
Desde então, passei a fazer bolos em casa com certa frequência. À medida que me aventuro em novas receitas e vou ganhando confiança na arte de fazer bolos, sinto uma profunda conexão com minha mãe. É muito gratificante perceber que herdei dela, entre tantas outras coisas, a habilidade de fazer bolos. Essa conexão não apenas fortalece nossos laços, mas também me traz conforto, ajudando a lidar com a saudade.
Agora, sempre que desejo sentir a presença da minha mãe, mesmo estando tão distante dela fisicamente, vou para a cozinha e preparo um bolo.
Desejo um Feliz Dia da Mães para todas as mães, especialmente para a minha!
E para os imigrantes, expatriados e refugiados que, assim como eu, não poderão estar fisicamente ao lado de suas mães para celebrar a data, envio meu abraço.
Fora do Laboratório…
A primavera finalmente chegou em Montreal! Os galhos, antes secos, das árvores estão agora repletos de pequenas folhas verdes, enquanto nos jardins flores coloridas começaram a desabrochar. Os parques estão cada vez mais sendo reocupados por seus habitantes naturais, os esquilos e passarinhos, e por gente de todas as idades que aproveitam o clima ameno, seja para atividades físicas e brincadeiras, seja para descanso e leitura. As pessoas agora se vestem com roupas mais leves e cores vivas, bem diferentes das várias camadas de preto e cinza, tão comuns no inverno, e a mudança também se vê em seus semblantes: parecem mais serenas e alegres. Os terraços dos bares e restaurantes foram abertos, convidando todos a aproveitar o clima agradável ao ar livre, após tantos meses enclausurados em casa. É bonito testemunhar a cidade – e as pessoas – renascerem!
Para ler: continuando com o tema culinário, além de bolos, tenho uma paixão especial por fazer pães. Assim como muitos, comecei durante a pandemia e desde então tenho me dedicado a aprender mais para assar minhas fornadas em casa. Amei esta edição da newsletter da Lena Mattar em que ela, além de contar sobre seu processo de aprendizagem sobre pães, compartilha uma receita de pão sem sova, perfeita para quem está começando a explorar o mundo da panificação caseira:
Para assistir: Cangaço novo (Amazon Prime). Assisti em uma sentada! A trama é envolvente, a trilha sonora maravilhosa, os personagens são interessantes – especialmente Dinorah, maravilhosa, que me lembrou bastante Diadorim de Grande sertão: Veredas. A única ressalva que tenho são alguns diálogos que me soaram um tanto mecânicos e pouco naturais, mas nada que comprometesse a qualidade da série. Mal posso esperar pelas próximas temporadas!
Para ouvir: E falando em mães, o album I Am My Mother da banda suíça Black Sea Dahu, é maravilhoso e um dos que tenho mais ouvido por aqui.
Diante das tragédias no Rio Grande do Sul, considerei não publicar esta edição do Laboratório de Escritas, que já estava planejada há um tempo. Parecia inadequado falar de temas como amor, saudade e beleza em meio a acontecimentos tão dolorosos. No entanto, decidi publicá-la como um momento de respiro, tanto para mim quanto para os leitores, e também como um lembrete de que, mesmo em tempos sombrios, há beleza, amor e esperança ao nosso redor.
Dito isso, envio minha solidariedade a todas as vítimas das tragédias no Rio Grande do Sul. Amanhã participarei do Aulão de Escrita, organizado pela Vanessa Guedes, cujo valor das inscrições será convertido em doações. Além disso, recomendo a leitura dessa edição da Paula Maria, em que ela reune newsletters de quem já escreveu sobre o assunto e indica iniciativas para quem deseja ajudar:
Abraços e até breve!
Créditos:
Revisão de texto: Lorena Camilo
A saudade é genuína, a escrita e a fornada com certeza demandaram coragem, e o tempero (à distância e a tempo) - o afeto de mãe, fizeram da receita e do momento mais belo e memorável. Belíssima escrita, Bubu. Belíssima memória, que agora é o nascimento de uma tradição partilhada entre mãe e filha. Distâncias internacionais não podem se interpor entre as palavras que você colocou aqui e o quão bonito foi ver sua mãe lendo. Mais uma bela memória de vocês. Parabéns.
Que lindo, Muni! Fiquei emocionada com o relato! Que continue se aventurando na cozinha, nas palavras, e compartilhando com quem te ama pra mantermos também essa conexão! <3