#2 - Desculpe incomodar
Algumas cicatrizes adquiridas na infância deixam marcas muito mais profundas do que na pele
Existe um episódio da minha infância que sempre achei engraçado e contava como piada. Eu tinha cinco anos e meu irmão havia acabado de nascer, então eu havia sido promovida de filha única a filha mais velha. Nesse dia, a casa estava cheia de visitas: parentes, amigos, vizinhos, todos estavam lá para conhecer meu irmãozinho. Eu, que até então era a única criança da casa, e muito paparicada por todos, havia me tornado invisível. Todas as coisas que antes eu fazia e eram consideradas fofas e motivo para todos me adorarem, naquele dia não fizeram a menor diferença. Ninguém ligou para mim, todos eram olhos, ouvidos e carinhos para o bebê.
Em um dado momento, cansada de tentar captar a atenção das pessoas, iniciei uma brincadeira simples, mas que me deixou muito feliz: correr de um lado para o outro no corredor que ligava a sala de estar à cozinha da minha casa. Partia de uma ponta e tentava alcançar a outra cada vez mais rápido, dando gargalhadas no processo. Só que minha brincadeira não agradou muito os adultos, e logo pediram para que eu parasse e ficasse quieta, porque iria acordar meu irmãozinho. Mas não obedeci, continuei minha minimaratona, correndo cada vez mais rápido e fazendo cada vez mais barulho.
Uma hora eu me desequilibrei e caí de cara no chão, justamente na parte do corredor em que a cerâmica estava um pouco solta. Assustada com o tombo, comecei a chorar. Uma tia veio, impaciente, verificar o que tinha acontecido. Quando me viu, gritou: “ela caiu e o queixo está sangrando”. Minha mãe e outros adultos vieram correndo. Criou-se – ou seja, eu criei – uma confusão. Chorava cada vez mais descontroladamente, pela dor e pelo pavor em ver o tanto de sangue que jorrava do meu queixo. Em meio ao choro, ouvia diferentes vozes dizendo coisas como: “ela rasgou o queixo”; “vai ter que levar para o hospital”; “não é nada, coloca só uma toalha para parar o sangue”; “essa menina está terrível, não para quieta, por isso machucou”; “se estivesse rezando não teria acontecido isso”; “ela está com ciúmes do irmãozinho, por isso quer aparecer”.
Minha mãe, de resguardo, não sabia se cuidava do bebê, que começou a chorar também, ou de mim, a filha ensanguentada. As tias e vizinhas, cada uma dava uma opinião diferente sobre o que fazer comigo. Tentavam estancar o sangue, mas nada adiantava. As toalhinhas alvíssimas do enxoval do meu irmão foram usadas e ficaram todas manchadas de vermelho. Caos, verdadeiro caos. No fim das contas, concluíram que o corte era profundo demais para ser tratado em casa, e ficou combinado que uma de minhas tias me levaria ao hospital para darem pontos em meu queixo aberto.
Fomos eu e minha tia de ônibus, e durante todo o trajeto eu chorava, ainda que um pouco mais contida, pressionando uma das toalhinhas do enxoval do meu irmão no queixo em uma tentativa de parar o sangue, que aos poucos foi coagulando. Chegamos ao hospital e, ao entrarmos na recepção, foi só sentir aquele cheiro de álcool misturado a doença e ver aquelas pessoas vestidas de branco para eu voltar a berrar. O corte se abriu novamente, fazendo com que meu rosto e pescoço virassem um tsunami de lágrimas e sangue. Não demorou muito para minha tia sentir os olhares de reprimenda dos funcionários do hospital e das demais pessoas na recepção. Ouvi ela explicando mais de uma vez que eu não era sua filha, só sobrinha.
Depois da papelada do hospital preenchida, me levaram para um quarto para realizarem a sutura e me deitaram em uma maca. Eu estava com muito medo. Sabia que o que iriam fazer comigo, e eu tinha muito medo de agulhas. Também sentia muita falta da minha mãe, era a primeira vez que ia ao médico sem ela. Tudo o que eu queria era sair dali. Com os olhinhos bastante marejados e em meio a muitos soluços, vi algo que me chamou a atenção. A maca em que estava deitada ficava colada em uma janela, e eu conseguia ver o estacionamento do hospital, os carros pareciam bem próximos a mim. Concluí, na minha mente de cinco anos, que a distância entre a janela e o chão lá fora não deveria ser muito grande. Sem nem pensar duas vezes, aproveitei que minha tia estava distraída conversando com os médicos e enfermeiros, e tentei pular pela janela.
Um dos enfermeiros percebeu a tempo e me impediu. Minha tia, assustadíssima, e os demais profissionais na sala se juntaram ao enfermeiro na tentativa de controlar a criança fujona. Mas eu não me deixei abater, estava firme na minha missão de sair dali e a janela era meu portal. Lutava com todas as minhas forças, me debatia, mordia, tentava de todo jeito me desvencilhar das mãos que me seguravam, enquanto gritava a plenos pulmões: “eu vou pular, eu vou fugir daqui!!!”.
A notícia de que um paciente estava tentando fugir pela janela rapidamente se espalhou pelo hospital. Curiosos vinham conferir o ocorrido, e ao chegarem no quarto, ficavam surpresos ao ver o paciente em fuga, questionando-se como uma menina daquele tamanhinho (eu sempre fui bem miúda) conseguia causar tamanho alvoroço.
Foi preciso que dois enfermeiros me segurassem, um pelas pernas e outro pelos braços, para que o médico conseguisse fazer a sutura. O procedimento foi concluído com sucesso e horas depois tive alta. Voltei para a casa muito cansada, ainda com dor e com quatro pontos no queixo, que faziam parecer que eu tinha barba, o que me deixou ainda mais desolada.
Quando meus pais souberam do meu comportamento no hospital, ficaram muito envergonhados, e eu fui repreendida. Com o tempo, como acontece com várias histórias de infância, o episódio virou piada na família e eu mesma passei a contá-la achando muito engraçado.
Há mais ou menos um ano, contei essa mesma história à minha terapeuta. Ao invés de rir, como sempre aconteceu, eu terminei a história aos prantos. Não soou engraçado. Senti uma dor tão profunda, quase como se eu tivesse novamente cinco anos e meu queixo estivesse aberto e sangrando. Chorei de soluçar por vários minutos. Quando consegui finalmente me acalmar, minha psicóloga me conduziu a uma reflexão que jamais havia feito.
O meu eu criança aprendeu, a partir desse episódio da infância e de muitos outros, que é isso que a gente ganha quando atrapalha o ambiente, quando incomoda: reprovação dos outros – principalmente das pessoas que a gente mais ama –, dor, choro e pontos no queixo que parecem barba.
Assim, o melhor mesmo seria não incomodar ninguém e viver de uma forma de que minha existência não interferisse muito na dos outros. Aprendi, com isso, a não fazer muito barulho, não ser inconveniente, não falar na hora errada e dizer só o necessário. Passei a tentar fazer tudo absolutamente perfeito e nunca errar, ou não fazer nada fora do esperado. Também parei de chorar, porque chorar deixa as pessoas desconfortáveis.
Na escola, fui a melhor aluna, muito comportada, cumpridora dos meus deveres, sempre com as maiores notas. Ninguém precisava se preocupar comigo, principalmente meus pais. Quando eu tinha alguma dúvida, jamais perguntava à professora durante a aula. Perturbar a dinâmica da classe, fazer com que os outros alunos parassem de fazer o que quer que estivessem fazendo para prestarem atenção em mim e na minha dúvida? Não, pode deixar, eu pesquiso sozinha.
Na adolescência, o mais próximo que eu cheguei de uma certa rebeldia foi gostar de bandas de heavy metal. Vinda de uma família bastante religiosa isso foi um choque. Por outro lado, eu era tão certinha em todo o resto, continuava indo à igreja, era ainda melhor aluna que na infância, não bebia, não saia escondida, aliás quase nunca saia, não namorava, que gostar de metal era só um detalhe. Não incomodava.
Nem vou entrar em detalhes na questão dos relacionamentos amorosos na fase adulta, porque isso vale muitos textos à parte. Só digo que tive alguns bem abusivos, justamente porque essa tendência a não querer incomodar foi facilmente utilizada por alguns ex-namorados para me manipular e diminuir.
Sempre considerei, na maioria das vezes, esse meu comportamento como um sinal de bom senso e timidez. No entanto, percebo agora que tudo não passou – e não passa – de uma estratégia aprendida desde a infância: evitar causar qualquer tipo de perturbação, por achar que se as pessoas se sentirem desconfortáveis por minha causa, não irão gostar de mim e, consequentemente, eu não serei amada, acolhida ou reconfortada.
Essa consciência tem sido um ponto de virada para mim. Tenho entendido, cada vez mais, que é impossível estar no mundo sem causar nenhum tipo de perturbação e venho tentanto me sentir confortável com o desconforto dos outros. Não é um caminho fácil, porém.
Em algumas ocasiões, especialmente com pessoas com quem tenho mais liberdade e me sinto mais segura, permito-me ser mais autêntica: expresso opiniões, demonstro raiva, descontentamento, choro, ou seja, me dou o direito de dar uma leve “perturbada” no ambiente. Mas não raro me julgo depois, culpando-me por ultrapassar limites e prometendo a mim mesma ficar mais reservada da próxima vez. Outras vezes, concluo que o que fiz ou falei não teve um impacto significativo. Ufa, que alívio! Aliás, quando percebo que consegui passar despercebida me sinto até melhor. Assim não incomodo.
Sábado, dia 2 de março, foi meu aniversário. Eu decidi não organizar um evento para comemorar, entre outros motivos, por não querer incomodar as pessoas. Isso ocorre anualmente não sei há quanto tempo. Já me peguei várias vezes pensando em convidar pessoas queridas e próximas. Já pensei tanto, que até tenho uma ideia de como as convidaria, seria algo como:
Meu aniversário está chegando e gostaria muito de comemorar com você, que é tão importante para mim e que sei que se importa comigo. Assim, espero você no sábado, dia 2 de março, às 19h, aqui em minha casa. Venha, vai ter bolo!
Mas, eu sei, em meu interior que seria como se eu estivesse falando…
Desculpe incomodar, mas se não for te dar muito trabalho, você poderia largar todas as outras milhões de coisas mais importantes que tem na sua vida para vir ao meu aniversário, me dar os parabéns? Mas só se não for incomodar mesmo.
Acaba que o convite não é escrito, muito menos enviado. Imagina? Deus me livre, tenho pavor só de pensar. Morro de medo de terminar o dia com aquela mesma sensação: de um queixo machucado e cheio de pontos. E assim sigo não incomodando.
Créditos:
Revisão de texto: Lorena Camilo
Imagem: Ivan Cruz
Fora do laboratório…
A primavera já começou a dar seus primeiros sinais no hemisfério norte, mas para nós, habitantes do Canadá, os dias ainda estão bem frios e a neve vez ou outra dá o ar de sua graça. No entanto, há um consolo: os dias estão gradativamente se alongando e ficando mais ensolarados, proporcionando desfrutar de mais tempo ao ar livre. Tenho aproveitado, assim, para andar e explorar diferentes vizinhanças em Montreal, observando a vida que vai aos poucos ressurgindo na cidade, após o longo inverno.
O que ando lendo: Nunca Vi a Chuva, de Stefano Volp. Um livro em forma de diário, que apesar de não ser meu estilo favorito, tem me prendido.
Newsletters que amei: ando obcecada por temas envolvendo trabalho, propósito, tempo, descanço e outros correlatos. Li vários textos ótimos por aqui a respeito, aqui vão alguns que ressoaram bastante em mim:
Cê tá com tempo?, da Taís Bravo.
Questionando o sentido da vida, da Virginia Valbuza.
O que ando assistindo: Comecei no fim de semana a série Expatriadas, no Amazon Prime. Assisti três episódios até agora e gostei bastante. A série tem tudo que gosto: dramas familiares, questões polêmicas e ainda envolve o tema da imigração, com o qual lido diariamente.
O que ando ouvindo: Este ano tive o prazer de conhecer o trabalho do músico Patrick Watson, que é daqui de Montreal. Fui a um show dele com meu marido e me apaixonei. Desde então venho ouvindo-o em loop. A minha música favorita dele se chama Melody Noir:
Abraços e até breve.
espero de verdade que você encontre maneiras de cada vez mais "se dar o direito de dar uma leve perturbada", pois sua espontaneidade e carisma são contagiantes, Muni.
adorei esse quadro "Fora do laboratório", é certo de que agora teremos uma excelente curadoria de dicas! :)